Autenticidade e Transparência na Rede



Vivemos na era da virtualização. Muito da nossa vida se passa online, no ciberespaço. Aí nos relacionamos, convivemos, fazemos negócios e trabalhamos.

Perguntar se somos os mesmos na net e no mundo real, seja em ambiente informal, seja em contexto de trabalho, é o mesmo que perguntar se somos os mesmos em qualquer contexto. Não somos. Não somos os mesmos com os amigos, numa saída à noite, e num jantar com os sogros. Ajustamos o nosso comportamento, a nossa forma de comunicar ao contexto em que nos movemos. Em última análise, interpretamos personagens, criamos identidades que nos parecem mais concordantes com a circunstância e que nos podem favorecer mais em determinado momento.

Este ajustar do comportamento à circunstância, este representar de um papel, é vulgar e não representa necessariamente o criar de um “Eu” falso. Azevedo, Souza & Istoe (2012) citam Jung para referir que este representar de papéis se relaciona com a ideia de Persona, “identidades" que adotamos conforme as circunstâncias com que nos deparamos. Todos nós utilizamos várias Personas ao longo da nossa vida, pelo que a nossa Persona online pode ser uma personagem com idiossincrasias próprias.

Bastante diferente é o caso de perfis falsos, em que há a criação consciente de um falso "Eu" com o intuito de disfarçar e esconder o "Eu" verdadeiro muitas vezes com o objetivo de manter atividades ilícitas e/ou eticamente reprováveis. Azevedo, Souza & Istoe (2012) referem que “com a flexibilidade e o dinamismo presentes nas Redes Sociais, mediados pela tecnologia, permite-se que estes papéis (…) ganhem vida nesse “não-lugar”, possibilitando que o sujeito seja qualquer coisa, menos ele mesmo.” Esta criação – e manutenção – de uma personagem que não corresponde ao que se é – seja pela forma de estar, pelo status social, pelo opinativo, pelo género sexual – “produz uma imensa gratificação emocional, e, ao mesmo tempo, um enorme sentimento de insegurança, além de um gigantesco gasto de energia psíquica para manter as aparências desses papéis”.

Há ainda a referir a necessidade de desenvolver um sentimento de pertença, que pode potenciar a criação de identidades falsas no mundo virtual, personalidades essas que o próprio pode valorizar mais que a sua personalidade, a sua vida real.

Ferreira (2014) cita Goffman para referir a atuação calculista de determinados indivíduos, “expressando-se de determinada maneira unicamente com a intenção de produzir nos outros uma impressão que resultará num efeito pretendido por si.” O termo modernidade líquida, proposto por Bauman, é uma expressão muito gráfica para descrever a fluidez das identidades online, “sem densidade ou estruturação consistente”.

Ao contrário do que poderíamos ser levados a pensar, este falsear do “Eu” pode não ser a regra no mundo virtual. Um estudo realizado por Amante, Marques, Cristóvão & Mendes (2014), tendo por público-alvo um grupo de jovens portugueses, com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos conclui que o “Eu” assumido no Facebook por estes jovens parece andar muito a par do “Eu” offline, contrariando a ideia segundo a qual a tendência será criar identidades ou perfis falsos, sustentados em nicknames igualmente falsos.

A constatação anterior não invalida, porém, a existência de “Eus” falsos no mundo virtual. Como fazer para os detetar? Nem sempre será fácil.

Se a autenticidade do interlocutor pode ser uma preocupação individual dos utilizadores – que devem estar alerta para determinadas incoerências na informação disponibilizada, é verdade que essa é também uma preocupação real das instituições que gerem ambientes online, em particular as redes sociais. Na verdade, de acordo com Ferreira (2014), “é a própria rede que requer identidades estáveis de modo a ser operativa, tanto por razões de ordem técnica como estrutural”.

Azevedo, Souza & Istoe (2012) referem que a falta de intervenção institucional pode permitir que “pessoas com desejos escusos e sem nenhum tipo de controlo esterno [possam] mascarar as suas reais intenções, podendo, inclusive, serem marcadas por ações e atos ilegais do ponto de vista penal”.

É também do interesse das instituições, por razões económicas, que o perfil dos utilizadores corresponda a um perfil real e estável, já que é nos dados fornecidos pelos utilizadores que se baseiam as sugestões de publicidade, de que muitas empresas virtuais vivem.

Um exemplo concreto de como as instituições esperam perfis consistentes, é o da empresa LivesOn, cujo slogan é “When your heart stops beating, you’ll keep tweeting” (“Quando o teu coração parar de bater, tu continuarás a twittar”, numa tradução livre). O serviço prestado por esta empresa é o de continuar a produzir mensagens no Twitter mesmo depois da morte do utilizador. Tal só é possível porque a LivesOn assume que a nossa presença na net é suficientemente personalizada e coerente – dados os nossos gostos, opiniões, forma de escrever – para que uma entidade virtual a possa “copiar” mesmo na nossa ausência. A sua eficiência pode ainda não estar provada, mas o pressuposto é que de alguma forma a maioria dos utilizadores assume uma personagem com alguma consistência na internet.

Sendo a autenticidade na rede uma preocupação de quem gere os contextos virtuais, há já empresas que apostam em evitar a proliferação de perfis falsos. Desde agosto de 2020 que o Instagram pede a confirmação de informações relativas à identidade de donos de contas com atividade suspeita. Num artigo publicado pelo site Tecmundo, “alguns comportamentos da conta que podem levantar suspeitas incluem a maioria dos seguidores de uma pessoa estar em um país diferente da localização dela ou quando existem sinais de automação, como contas de bot. A ideia é entender melhor quando contas podem estar tentando enganar seus seguidores. (…) Se o dono de uma conta se negar a confirmar sua identidade, seu conteúdo terá distribuição reduzida e a conta pode até mesmo ser desativada.”

Um dos problemas dos perfis falsos, que podem ser criados para difundir fake news, para burlar incautos ou perpetrar ações ilícitas, é o número de pessoas a que podem aceder. Se é verdade que duplas personalidades, burlões e criminosos sempre existiram, não podemos ignorar que a internet lhes deu palco e a possibilidade de se ligarem um número de pessoas impensável na era pré-internet. Todos conhecemos pessoas com milhares de “amigos” no Facebook ou de seguidores noutras redes sociais. O que pensar sobre este exponenciar de contactos virtuais?

Apesar destes contactos poderem corresponder de facto a um palco privilegiado para difusão de informação (como já aconteceu com a rádio e atualmente com a televisão ou jornais online), dificilmente corresponderão a ligações efetivas entre pessoas. Ruano (2015) explora o pensamento de Bauman, que defende que no mundo virtual “são criadas conexões, não relacionamentos. Em vez de parceiros, fala-se em contactos.”

Bauman aponta “a quantidade absurda” de números de contactos de muitos utilizadores das redes sociais, na ordem da dezena de milhar, como prova que esses contactos não podem corresponder a uma convivência no mundo real. De acordo com o autor, a atratividade desta conexão virtual é que é tão fácil de conectar como – mais atrativo ainda – de desconectar. Bauman considera que nas relações “corpo-a-corpo” romper relações é sempre um evento traumático; já no mundo virtual, “apagar” “amigos” está à distância de um click, sem justificações nem desculpas. Esta banalização de conexão e desconexão online mina, na opinião do autor, as relações humanas.

Este pessimismo de Bauman, sendo defensável e até encontrando vários exemplos que o ilustram, esbarra, no entanto, com muitas conexões online que transbordam com sucesso para o mundo real. Vários relacionamentos que começaram no mundo virtual e que evoluem com naturalidade fora do ciberespaço. É, aliás, prática comum a promoção de encontros físicos entre membros de uma comunidade virtual, sendo vulgar que pessoas com interesses comuns nas redes sociais continuem a encontrar afinidades offline.

Em conclusão, muito do que somos passará para a nossa personalidade online e a maioria dos utilizadores das redes sociais serão honestos nos contactos que estabelecem. Há, no entanto, que contar com a possibilidade, potenciada pela imensidão do mundo virtual, da existência de perfis falsos e de utilizadores que investem num “Eu” falso com propósitos menos claros e, por vezes, pouco éticos e até criminosos. Se cada um de nós deve estar alerta para esta realidade, a verdade é que compete também às instituições que gerem ambientes online, sendo até do seu próprio interesse, garantir processos que validem a autenticidade dos utilizadores das suas redes. Tais cuidados tornarão o ciberespaço num local mais seguro e menos propício à difusão de desinformação – contribuindo para um melhor mundo real.


Referências

AMANTE, L., MARQUES, H., CRISTÓVÃO, M. R., OLIVEIRA, P. & MENDES, S. (2014). Jovens e processos de construção de identidade na rede: O caso do Facebook. Educação, Formação & Tecnologias, 7 (2), 26-38 [Online], disponível a partir de http://eft.educom.pt.

 AZEVEDO, J., SOUZA, C. & ISTOE, R. (2012). A Coisificação do “Eu” e a Personificação da “Coisa” nas Redes Sociais: Verdades e Mentiras na Formação das Estruturas de Identidades. Texto Livre – Linguagem e Tecnologia. Ano: 2012. Volume: 5. Número: 1. Disponível em https://periodicos.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/16610/13370

FERREIRA (2014). Rostos do Facebook – a formação da identidade nas redes sociais. EXEDRA – Revista Científica ESEC. Nº 9 de 20014. Disponível em http://exedra.esec.pt/wp-content/uploads/2015/04/n9-B4.pdf

MACEDO, J. (2020, 13 de agosto). Instagram agora pede documento para confirmar identidade de usuários. Acedido a 18 de dezembro de 2020, em: https://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/156207-instagram-pede-documento-confirmar-identidade-usuarios.htm

 RUANO, E. (2015, 14 de agosto). A Era da Liquidez: Parte V (Conexões Líquidas). Acedido a 18 de dezembro de 2020, em: https://laparola.com.br/a-era-da-liquidez-conexoes-liquidas

 

Sem comentários:

Enviar um comentário